Resenha de "O Doador de Memórias" (Lois Lowry)

"Sociedade maravilhosa"



Sinopse: Ganhadora de vários prêmios, Lois Lowry contrói um mundo aparentemente ideal onde não existe dor, desigualdade, guerra nem qualquer tipo de conflito. Por outro lado, também não existe amor, desejo ou alegria genuína.Os habitantes da pequena comunidade, satisfeitos com suas vidas ordenadas, pacatas e estáveis, conhecem apenas o agora - o passado e todas as lembranças do antigo mundo foram apagados de suas mentes. Uma única pessoa é encarregada de ser o guardião dessas memórias, com o objetivo de proteger o povo do sofrimento e, ao mesmo tempo, ter a sabedoria necessária para orientar os dirigentes da sociedade em momentos difíceis. Aos 12 anos, idade em que toda criança é designada à profissão que irá seguir, Jonas recebe a honra de se tornar o próximo guardião. Ele é avisado de que precisará passar por um treinamento difícil, que exigirá coragem, disciplina e muita força, mas não faz idéia de que seu mundo nunca mais será o mesmo. Orientado pelo velho Doador, Jonas descobre pouco a pouco o universo extraordinário que lhe fora roubado. Como uma névoa que vai se dissipando, a terrível realidade por trás daquela utopia começa a se revelar.Premiado com a Medalha John Newbery por sua significativa contribuição à literatura juvenil, este livro tem a rara virtude de contar uma história cheia de suspense, envolver os leitores no drama de seu personagem central e provocar profundas reflexões em pessoas de todas as idades.

Essa resenha era para ter saído tem mais de dez dias, mas estou naquele período do ano que todo blogueiro passa por uma bexiga de bloqueio mental onde nada sai de dentro da cachola. E para completar minha vida, estou com a porcaria da mão esquerda em uma tipoia, portanto escrevendo com uma única mão, o que não ajuda a ganhar velocidade no desenvolver da escrita. Mas enfim estou aqui, e com a resenha desse livro delicioso. 

A blogosfera estava numa completa maluquice por conta do lançamento do filme, o qual eu já vi e que postarei um comentário sobre ele no final da postagem. Vários cartazes e os trailers para lá de maravilhosos deixaram os movieholic e os bookaholic loucos da vida para saber mais sobre o Doador de Memórias. E eu, como uma amante ensandecida de distopias, não perdi a chance de solicitar o livro e vim contar para vocês o que achei dele. 

Nosso protagonista é o Jonas. Um menino que vive numa sociedade altamente cheia de regras. Ele está passando para a adolescência, e nessa idade toda criança recebe o que será sua função no futuro. Todos estão temerosos e ansiosos, mas Jonas é sempre confiante, e espera que tenha uma função que combine com ele, apesar de não ter ideia do que poderia ser isso, como muitos dos seus amigos tem. Ele é um pouco de tudo, e sente que não pertence a nada. Sente-se um pouco diferente, e isso nós vamos entender apenas quando chega o dia da cerimônia e Jonas não é selecionado para nenhuma das funções da sociedade. Ele é escolhido para ser o próximo recebedor de memórias, um cargo único e que quase ninguém entende o que faz. 

É assim que o menino vai parar no escritório do Doador,  o ancião que tem que passar todos os conhecimentos para Jonas antes que sua hora chegue. O problema é que esses conhecimentos parecem ser bem maiores do que Jonas achou que pudesse ser, e se vê num labirinto maluco entre o que aprendeu a vida inteira ser a realidade, e o que o Doador está mostrando através das memórias que choca - e muito - com o que ele acredita. Daí o nosso herói começa uma jornada de reconhecimento da sua força de vontade e do limite do que é certo e errado, e o quanto ele estará disposto a sacrificar para fazer a coisa correta. 

A primeira coisa que venho chamar a atenção de vocês acerca desse livro é sobre a sociedade que Lowry construiu. Poucos livros que li tinham uma estrutura social tão fantástica como em O Doador de Memórias. Acho que os clássicos antigos como Admirável Mundo Novo e Fahrenheit 451. Fora esses, todos os livros distópicos eram voltados para os personagens, e bem menos na sociedade. Isso não acontece com esse livro. A sociedade é escandalosa de bem trabalhada. Chega a ser palpável o ar do lugar e a falta de cores, e essa, meus amigos, é outra das genialidades da autora. 

O cenário do livro é todo preto, branco e tons de cinza. As pessoas na sociedade não enxergam cores. De acordo com eles, as cores fazem você ter vontade, emoções e permite separações dentro do convívio social. E daí viria o racismo e preconceito. Então tudo o que pode separar as pessoas foi abolido desse lugar. Nada de religiões, ou política ou pessoas lutando para terem cargos de trabalho bons. Elas nascem com um propósito, são denominadas para suas funções e até seus pares e filhos são escolhidos pela sociedade. Eles não conhecem quaisquer sentimentos, e tem algo - que também achei genial - que eles chama de precisão de linguagem, que é quando eles filtram um sentimento até eles virarem algo biológico, e não emocional. Gente, eu posso escrever o dia inteiro aqui e vocês não vão entender como o sistema é complexo e maravilhoso nessa sociedade. Vocês tem que ler para sacar. 

E quando Jonas começa a enxergar o mundo ao redor dele, e perceber que existe mais além daquela redoma social na qual ele vive, então é que a história ganha um viés emocionante e lindo. É belíssimo ver esse garoto aprender sobre amor, dor, perdão, fé... tudo ao mesmo tempo. E quando penso que autora não poderia me impressionar mais, ela vem com a ideia - fantástica - de que as pessoas enlouqueceriam se isso tudo viesse de uma vez, num aprendizado desses que Jonas teve. Tipo, a gente cresce aprendendo sobre guerras, sofrimento, morte... O que acontece se você fosse privado disso? Claro que também seria privado do amor e do desejo, do contrário não haveriam as guerras. Eles tiram as coisas boas para evitar as ruins. Tem sentido nisso? De início não parece ter, mas ele tem todo sentido do mundo. A magia desse livro de Lowry está nessa construção que se liga, e nem tanto nos personagens. Eles são apenas o fio condutor que nos leva a entender o quão complexo pode ser esse sistema, e o quão falho ele parece ser para quem está aqui e sente, e chora e ama. 

É um livro pequeno. Tem quase 200 páginas. Mas são as 200 páginas da sociedade mais bem feita que tenho visto nos últimos tempos. Tão bem feita que depois que acabei de ler fiquei pensando como eles conseguiriam transformar isso em filme, e a surpresa veio quando eles realmente conseguiram fazer isso com precisão quase cirúrgica. 

O Doador de Memórias é uma série - acho que de 4. Pelo o que li no Goodreads, os livros são meio que independentes, o que é bem estranho porque o livro termina aqui com Jonas numa situação que COM CERTEZA eu queria ver o resto. O final desse livro é lindo! De uma poesia que beira a musicalidade. Se fosse possível ler de olhos fechados, eu recomendaria subir numa moto, fechar os olhos e acompanhar o final dessa história sentindo a adrenalina da velocidade, porque é justamente como acaba o lance aqui. 

Se eu recomendo esse livro? PQP, vai ler logo! E não espere um livro repleto de ação. Ele vai te colocar para pensar. E se você o terminou e não conseguiu pensar o que deveria ter pensado, volte a ler do início porque ele é uma escola inteira embutida em 200 páginas. Uma escola de vida

                                

Levantando alguns pontos importantes sobre o filme:

O primeiro deles é que o lance das cores ficou simplesmente perfeito!
Então se você começou a ver o filme e não conhecia o livro, pode ser que estranhe a ausência de cores vibrantes. Não se desespere. As cores aparecerão no momento certo, com o sentimento certo e explodirão em você num arco-íris enlouquecedor. 

Outro ponto foi a participação da Taylor Swift. Querida, todo aquele alvoroço por menos de cinco minutos de filme? Fala sério! A personagem tem mais vida no livro do que no filme. Não entendo porque ela ganhou milhões de cartazes se as falas dela se resumem a um punhado de coisas sem sentido e umas batidas num piano. Ela some perto de Jonas. Ela some até perto das árvores da cidade. 

O elenco foi uma coisa que não combinou na minha cabeça, mas acho que a proposta foi justamente essa. Eles queriam diversidade, e conseguiram com esse pessoal. 

As cenas onde Jonas está descobrindo sobre a realidade da sociedade tão DIVINAS! Eu chorei com umas três delas. Sensíveis, angustiantes e pra lá de belas. Acho que tem muito da escolha da trilha também. 

Claro que o cinema romantizou o livro! Colocou um elenco um pouco mais velho, entre a adolescência a fase adulta, e daí com isso abriu espaço para Jonas se apaixonar. Não é nada que mude o contexto da história, mas é um ponto bem comercial para a coisa. 

O final ficou incrível no filme porque ele mesclou coisas que aconteciam com Jonas e com a sociedade ao mesmo tempo. No livro só temos o POV dele, o que é emocionante em alguns pontos, mas nos deixa no escuro em outros. No filme eles dosam isso, e achei justo. 

O filme ficou bem feito. Pode ser que quem não leu o livro vá se perder num detalhe ou outro, mas eu como leitora fiquei feliz de ver algumas cenas na tela, e outras tantas sendo acrescentadas com segurança e beleza. Personagens pequenos ganham vida aqui. Os grandes ganham leveza. O filme ficou - no geral - bastante fiel, e fico feliz por isso