E depois do fim? A saga do herói.


Imensidão e solidão. Duas palavras que determinam conceitos os quais nos pegamos pensando bastante ao final de um livro bem escrito de um herói, mesmo aqueles heróis que terminam com finais bonitinhos e românticos.

Ontem meu filho pediu para ver Harry Potter e o Cálice de Fogo antes de dormir. Coloquei o filme para ele e continuei escrevendo um trabalho para ser entregue na faculdade na segunda. Acontece que tem filmes que simplesmente não passam sem prender minha atenção, e ontem me vi fisgada por esse. Lógico que já assisti todos da série! Sou daquelas fanáticas pobres, sabe? Daquelas que assistem e leem, mas não podem ter versões de colecionador nem varinhas ou horcruxes no armário porque são caras.
Assistir Harry Potter é um retorno à lembrança de algo inexplicavelmente possuidor e triste. Mas então eu me refiro não ao filme, que nada mais é do que uma representação visual e fácil de algo muito mais complexo que foi essa série escrita pela Rowling e que tem tanto preconceito nas costas.
Acompanhei Harry Potter crescer junto a mim. Ele com os problemas de bruxo para enfrentar e eu morrendo de inveja porque minhas varinhas não escutavam meus encantamentos. Lembro-me de cada termo criado pela Rowling e muitas vezes dos diálogos, o que é incrível para mim que não lembro bem quando andei de bicicleta pela primeira vez ou o nome do meu vizinho. Eu esqueço até de onde guardei o dinheiro para pagar a conta. Tenho uma memória péssima, mas que pergunte qualquer termo ou encantamento dessa história que eu vou lembrar.
Terminei de ver o filme ontem com dor. Uma dor latente e nostálgica. Era como se eu me colocasse no lugar do próprio Harry, nesse caso o herói, e me visse na terrível situação de não saber o que fazer depois.


Para mim O Cálice de Fogo é o livro que dá início a tormenta do herói. É nesse livro que a morte resolve bater na porta dele e deixar lembranças dolorosas e inapagáveis. Foi nesse livro que descobri como Harry Potter não é uma série infantil de um menino órfão que sabia fazer bruxaria com uma varinha. É sobre um menino que não tinha referência familiar alguma e que poderia ter se tornado um adolescente revoltado da vida e mal, como era a tendência do personagem, mas ainda assim foi o mais centrado e corajoso personagem que já vi dentro dos termos que a vida lhe dava.
Ler o último livro da série foi um sacrifício para mim. Eu chorei, quis voltar a ler novamente, e voltei a chorar porque se despedir é uma das coisas mais difíceis do mundo e não importa se é de alguém de verdade, ou alguém de papel. Ambas acrescentaram parte delas na sua vida, e você doou parte da sua vida para elas.
Pensar que Harry Potter poderia ter um final feliz era utópico, e continua sendo. O mesmo se dará em pensar num final feliz de Frodo em O Senhor dos Anéis ou Katniss em Jogos Vorazes.


Eles perderam muito. Eles tiveram que mudar suas vidas por conta de uma situação que nunca lhes coube escolher. Simplesmente esqueceram-se de esperar por um amanhã e viviam um dia de cada vez na esperança de voltar a sentir o sol. Podemos julgar suas escolhas? Podemos dizer que faríamos diferente?
A pior parte disso tudo talvez seja o depois.
Na maioria das situações os heróis não esperam que vá viver, mas daí eles vivem, mas não tem a mínima noção de como continuar a fazer o que faziam antes. Eles não lembram mais de como é sorrir como antes e nem das coisas que costumavam fazer. As cicatrizes são visíveis e pesadas, mesmo aquelas que apenas estão na alma. Isso está bem explicado no final de O Retorno do Rei, quando Frodo, Sam, Merry e Pippin estão num bar vendo os Hobbits ao redor fazendo o que eles costumavam fazer antes, mas sem noção alguma de como imita-los. Eles viram demais. Eles fizeram demais. Eles estão cansados demais por esperar a morte e terem que lidar com coisa mais desconcertante, a vida.
Não são finais felizes, mesmo que os protagonistas terminem vivos e potencialmente bem. Não é final feliz porque o feliz é algo inocente e inexplicável. Quem já passou pelo o que eles passaram, jamais poderia se sentir inocente e jamais teriam chegado onde chagaram se sentindo inexplicáveis.


Passar por uma situação difícil é ter que se conhecer bem demais para se ignorar. É conhecer seus limites e até onde sua dor pode te levar.
O engraçado é que quando minha filha e meu pai morreram e depois eu me separei daquela forma brusca e traidora, eu tive que aprender a recomeçar. Eu ia para lugares e via pessoas que me faziam sentir a vida correr através de mim, mas quando eu estava só, eu estava só. Eu me lembrava da dor e perguntava “Como se continua?” “Como se volta a viver quando você não esperava ter que recomeçar?” “Como fazer planos se você não acredita que eles tenham algum fundamento?”.
Então a gente vai vivendo um dia de cada vez, exatamente como Frodo, Harry e Katniss. Vamos tentando achar alegrias diárias e nos apegar nelas como se nossa própria sobrevivência dependesse disso. Vamos fazendo coisas idiotas porque ser idiota em muitos momentos é menos prejudicial à saúde.
Mas as dores ainda estão lá. Martelando no nosso corpo e transformando em coisas musculares algo que nunca foi mais do que emocional. A vida não nos deixa esquecer como respirar, porque é ai que está a nossa lição. Ela apenas prende nossa respiração embaixo d’água e espera para ver por quanto tempo seguramos o fôlego e como fazemos para pegar ar novamente antes que ela nos trague de volta a esse mar sem fim.
Já se pegou pensando em como nossos heróis são tão parecidos com nós?
Em como o padeiro da esquina sobreviveu a um câncer e gosta de ir para o pagode dançar de noite.
Em como uma cabeleireira tem quatro filhos e um marido violento e vagabundo e ainda consegue dar conselhos amorosos para as suas clientes.
Em como uma adolescente cria o irmão mais novo porque o pai morreu e a mãe é uma mulher doida demais para saber como criar alguém sozinha.
Esses personagens saíram de nossa própria vida. A diferença é que nossa magia é mais palpável. Que nosso anel chama Sauron de forma diferente e talvez mais animalesca. Que nosso governo não cria arenas para matar crianças, mas deixam que elas se matem nas ruas todos os dias.
É nossa vida sendo repetida e nós estamos olhando através de um véu ilusório e superficial.


Nenhum desses livros foi mero acaso. Foram pensados e colocados para serem analisados. Harry é o menino que sobreviveu e quantos não são? Frodo viajou de um lado a outro da Terra Média para destruir o mal e foi tentado várias vezes pelo caminho. Quantos também não são? Katniss lutou contra um governo opressor e mudou o rumo de uma história porque passou a pensar com sua própria cabeça. Conheço vários jovens assim.
Agora é sua vez de me dizer... Qual heroísmo você cometeu hoje? E como é para você continuar depois de um?