Constelações de Gritos mudos (Nicolas)

Olá galera!
Hoje foi um dia cansativo por aqui, meu filhote passou o dia doentinho e eu, como mãe desesperada, passei o dia inventando comidas e histórias engraçadas.
Mas o motivo que me traz aqui hoje é uma seção nova no blog; ela se chamará "Constelações de Gritos mudos" e terá a intenção de trazer para vocês cortes de alguns contos meus. Essas contos juntos formam um trabalho maior, e queria compartilhar com vocês um pouco disso. O de hoje tem como personagem o Nicolas. Um dos mais recentes, e um dos meus prediletos.
Então, ai vai.



NICOLAS



Nicolas estava cansado.
Parou em frente a casa e quase se sentou na calçada esperando criar coragem de entrar. Sabia que aquele não seria um bom dia, afinal de contas ela não tivera uma boa noite. Um sorriso depressivo acomodou-se nos seus lábios. Lembrava-se daquele lugar com mais cor, com mais brinquedos e sem dúvida, com mais sorrisos. A grama costumava ter cor de grama, mesmo daquelas sintéticas. Hoje parecia ferrugem sobre a terra, e nem os animais se arriscavam andar nela. Talvez eles também frequentassem aulas que ensinavam algo sobre tétano.
Um vento frio o fez puxar o casaco cobrindo as mãos. Aquele tempo não ajudava em nada a sua repulsa em entrar. E então ouviu um gemido. Algo como desesperador demais pra conseguir se manter naquela inércia. Contudo simplesmente ficou ali, parado e mudo, com mais enfado nos olhos do que o normal. Suas mãos que estavam frias suavam e algo não deixa suas pernas pararem de tremer. Foi quando alguém gritou:
                    E ai moleque, vai ficar ai parado escutando ela gritar?
O susto foi tão grande que deixou cair a bolsa da escola no chão. Olhou sem jeito pro senhor na sacada da casa do lado. Fumava um cachimbo e se balançava numa cadeira ruidosa. Era um aposentado de guerra de quase oitenta anos. Morava naquela casa há muitos anos e sempre estava sozinho. Escutou uma vez a senhora que entregava leite dizer para a outra senhora que passeava com o poodle preto, que a esposa havia morrido de câncer há alguns anos, e que ele havia ficado insuportável desde então. Nicolas concordava com o insuportável, mas acreditava que a esposa tinha morrido justamente por isso. Na época ele próprio tinha sete anos, mas ainda acreditava nisso. Ficou impressionado que até aquele momento ele não sentira nem o péssimo cheiro do tabaco que sempre o deixava de estômago embrulhado, nem o barulho irritante daquela madeira velha em que homem se balançava.
                    Boa tarde senhor! - Ele respondeu abaixando pra pegar a bolsa do chão.
                    O que tem de bom?  - O velho respondeu depois de uma longa tragada – Não aguento esses gritos o dia inteiro. Você não pode deixar ela sozinha tanto tempo.
O tom era acusatório, e Nicolas simplesmente odiava que se falasse com ele desse modo. Sentia sempre que um urso começava a crescer em seu ventre toda vez que, de alguma forma, lhe colocavam o dedo na face. Respirou fundo e foi andando lentamente pelo estreito caminho que levava até a porta da frente. E mais uma vez ouviu:
                    Está me ouvindo não é moleque? Não quero essa gritaria no meu ouvido. Já estou velho demais para aturar isso.
“E eu cansado demais para aturar o senhor” - Ele pensou. Fechou os olhos enquanto andava e contou até dez. Era uma tática usada pelas pessoas que não podiam explodir. E de costas mesmo respondeu:
                    Ela só teve uma noite ruim. Logo ficará melhor.
O velho resmungou algo que ele não ouviu, mas achou que foi o mesmo que ele havia pensado:
“Ela nunca ficava melhor. Há exatamente cinco anos ela não ficava melhor”.

Nicolas quase vomita quando abre a porta. O cheiro de mofo e podridão veio com o vento, juntamente com um cheiro adocicado que lembrou açúcar queimado. Ele respirou fundo procurando um ar que nem lembrava que tinha e fechou a porta atrás de si. Encostou-se ainda ouvindo os gemidos chorosos que vinham de algum lugar da pequena casa de poucos cômodos. A sala estava virada de cabeça para baixo. A televisão derrubada no chão, e o tapete persa, que ela tanto amava, encardido e cheio de poeira encolhido embaixo do sofá. Sentiu uma vontade louca de se juntar ao tapete e se encolher. Invés disso andou passando os olhos na cozinha que tinha panelas no chão e pratos quebrados. E de lá foi até o banheiro que estava com o chuveiro ligado espalhando água pelo pequeno ambiente.

Nota sobre Nicolas: Ele estava cansado. Tão cansado que até a atividade de fechar o chuveiro para evitar um alagamento e uma conta de água caríssima parecia um movimento épico em câmera lenta.

Continuou pelo corredor. A porta de seu quarto estava aberta como sempre. Já a porta do quarto ao lado estava trancada com tantos cadeados que achou nem existir chaveiros suficientes em casa para abri-los. Arranhões a enchiam. Parecia que um cachorro havia lutado desesperadamente pela sua vida tentando entrar naquele lugar. Ele engoliu uma substância arenosa e de gosto amargo quando fitou os arranhões. Era difícil demais passar por ali. O cheiro começou a ficar insuportável. E o barulho pior ainda.
O quarto de portas abertas que ficava exatamente no final do corredor, era sempre o lugar mais assustador da casa. Enquanto se andava para chegar nele, a madeira do chão rangia e tinha os arranhões, e também tinha desenhos rabiscados que nem aquela tinta carbono conseguiu apagar. Algumas mãos têm trabalhos mais eficazes porque não nos esquecemos deles nem com toda borracha do mundo.
E lá estava ela. Deitada no chão, vestindo uma roupa que ele temia estar em seu corpo há dias. O cabelo era puro óleo, e o corpo estava cheio de marcas. Ele ficou ali suprimindo o choro e o ódio que sentiu. Ela não o vira, estava de costas para ele olhando para um mensageiro do vento colocado na janela. O barulho do objeto parecia brigar com os sons guturais e animalescos que ela emitia.  
Estava inerte naquela vontade louca de sair correndo. E sentiu o peito apertar como se uma bola lançada por um estilingue qualquer tivesse acertado em cheio seu tórax. Deixou a bolsa cair no chão e foi ai que ela despertou para a presença dele. Mas não era para seus olhos que ela fitava, era para as paredes, para as pernas, para o guarda-roupa velho e para as próprias mãos. Ela não o olhava havia muitos anos.
Mesmo que a vontade de se juntar a aquele tapete na sala fosse imensa, ele resolveu que não poderia ir. Não se perdoaria se fosse. Os sentimentos contidos naquele quarto eram tão estúpidos de ruins e lentos e tristes e raivosos, que sempre o impediam de ir. Lentamente chegou perto dela, e com cuidado a levantou do chão. Estava muito mais leve do que se lembrava da última vez que a carregara. Tinha que admitir que a alimentação naquela casa andava bem precária. Ele não sabia cozinhar muito bem, e a comida parecia rançosa na boca.  Os gritos tinham se transformados em gemidos de dor. Uma dor que nenhum dos vinte calmantes que estavam na cabeceira da cama dela poderia ajudar. O cheiro que ela emanava era horrível. Nicolas teve que prender a respiração para não ficar mais enjoado do que já estava. A colocou na cama sem jeito e a cobriu com um resto de lençol com desenho de urso que ela teimava em não jogar fora. Ela apenas virou para o outro lado. E voltou a gemer.
Os olhos dele se fecharam inconscientemente. Só queria sair correndo de lá. Pegou a bolsa segurando a respiração para não desabar ali mesmo. Puxou a porta com calma e ela falou quase num sussurro:
                    Nicolas?  - Era uma vez embargada e sombria
                    Oi? - Ele perguntou voltando rapidamente para o quarto.
Ela ainda olhava para as mãos, analisando talvez suas palavras. E um sentimento que ele conhecia muito bem se apoderou dele novamente, uma esperança ridícula de uma redenção que ele sabia que nunca viria.
                    Tem doce de goiaba no fogo.  - Ela respondeu num sorriso meio lunático. E ele percebeu que nada havia mudado – Marina adora doce de goiaba.
Então ela virou de novo e fechou os olhos.
O cansaço era uma palavra comum naquela casa. E uma força física mais comum ainda.
Fechou a porta devagar e caminhou arrastando os pés até a sala. Jogou a bolsa de qualquer jeito no sofá e sentou perto do tapete persa pensando nos Persas, em viagens internacionais e passeios turísticos a lugares exóticos. O vento frio trouxe com ele o cheiro do doce de goiaba queimada no fogo.
Goiaba...

Nota sobre os Tavares: Eles adoravam goiaba. E usavam verbos quase sempre em tempos errados.

Levantou decidido a fazer o trabalho sobre história antiga de algum qualquer do terceiro ano antes de começar a comer o doce. Ou mudaria de ideia e comeria o doce antes. Na verdade, não estava com tanta vontade de goiabas hoje, nem de tempos verbais que não existiam. Apenas voltou a sentar e colocou a cabeça no tapete empoeirado e desmaio de cansaço.
Cansaço...
Já disse que era uma palavra comum naquela casa?
E seus sonhos foram sobre pessoas cansadas vestindo roupas persas e comendo doces de goiaba.